Afiação e os cuidados básicos com as facas

Fio - Afiação

Quanto melhor o fio, menores serão as forças de corte e, consequentemente, menores as chances de acidentes. Pedra de afiar, cimento da calçada, borda da pia, plaquinha diamantada, pedrinha japonesa de trezentos dolares ... não importa, desenvolva o seu método e mantenha as suas lâminas afiadas!
Com "ângulos de gume" menores a força de corte será menor, contudo o vértice tenderá a dobrar ou a quebrar e com ângulos maiores o fio será mais resistente, entretanto a força de corte será maior. Portanto, afiações com "ângulos de gume" pequenos demandam lâminas com maior dureza ou lâminas descartáveis.
Um bom profissional aprimora continuamente sua compreensão sobre a tarefa de corte e as características necessárias da lâmina, para a retenção do fio.

facas angulos de afiação
"Ângulo de gume"
é o ângulo total entres as faces de afiação, quanto menor o ângulo, maior a tendência do vértice deformar e/ou quebrar.

Ângulos de afiação:

simétrico, afiado nas duas faces 
ângulo do gume
bisturis 15° a 17°
estiletes 15° a 20°
facas legumes 20° a 25°
facas carne 25° a 30°
utilitarias 25° a 35°
cutelos 30° a 40°
facões 30° a 40°
machados 40° a 55°
alicates corte 55° a 65°

assimétrico, afiado em uma face
ângulo do gume
facas japonesas 15° a 25°
facas para couro 20° a 25°
formões 22° a 25°

Assentar o fio

Na afiação, após acertada a geometria e o gume, é necessário remover as rebarbas ("burr") geradas durante o desbaste do fio. O método mais usual é a utilização da chaira ("steeling"), geralmente uma barra de aço liso, que fica polido com o uso. Chairas estriadas como limas ou impregnadas com abrasivos, funcionam como as pedras de afiar, removendo pequenas quantidades de materiais. Voltando, as chairas lisas auxiliam a polir e a desentortar as "micro deformações" do vértice do gume, em que o leve atrito metal com metal realiza o alinhamento no gume cortante, por vezes denominado "assentar o fio". Uma outra forma de pensar sobre a função da chaira é que ela realiza um segundo "micro gume" com ângulo levemente maior.
Um outro modo de remover as rebarbas é utilizar um retalho ("strop - strap") de couro impregnado com pasta polidora, tendo o cuidado de manter o ângulo. O fio pode ser mantido com o uso destes métodos de "alinhamento/polimento" durante algum tempo, sendo o intervalo entre as afiações com abrasivos dependente do uso e da dureza da lâmina (retenção do fio).

Uso recursivo da chaira

A chaira utilizada de forma recursiva pode indicar alguma outra questão, como: uma dureza inadequada da lâmina (baixa retenção do fio), a necessidade de se refazer o fio com abrasivos ("pedras"), um ritual do usuário sem qualquer ganho efetivo no fio ou um ângulo inadequado ao se passar a lâmina na chaira. Quanto a esta última hipótese, é frequente se observar que os usuários ao tentarem resgatar o fio, aumentam o "ângulo de gume", por exemplo: uma tarefa de corte que seria adequada com "ângulo de gume" de 30 graus ao passar na chaira está sendo criado um "micro-ângulo de gume" de 45 graus, que efetivamente corta, mas não tão bem quanto cortaria com 30 graus e o insatisfeito usuário passa novamente na chaira e novamente e novamente...

Durabilidade do fio das facas

Algumas vezes há pequenos dentes no gume, devido a fragilidade da lâmina ou simplesmente pelo uso. Nestes casos se deve ponderar: vale a pena desgastar até retirar ou conviver com a pequena falha? Pois, uma porção útil da lâmina poderá ser removida sem necessidade. Afinal, nas afiações subsequentes essas falhas irão diminuir até sumirem.

O fio pode durar alguns segundos, algumas horas, conforme o trabalho, a dureza da lâmina, o material a ser cortado, o ângulo de afiação e a dureza da tábua de corte. Prefira lâminas adequadas à tarefa de corte e tábuas macias, reserve as "tábuas de vidro" para servir!

variação da espessura do fio com as afiações
A espessura atrás do gume aumenta com as afiações.


Com as afiações a espessura imediatamente atrás do gume irá aumentar devido ao ângulo da lâmina e ao desgaste inerente as afiações. Alguns utilizam a expressão "o fio está grosso" e observam que a faca mesmo recém afiada não corta mais como cortava quando nova. A correção é relativamente simples, a lateral da lâmina deve ser desbastada para diminuir a espessura próxima ao gume.

Lâmina

A maioria das lâminas são de aço carbono ou de aço "inoxidável" e os cuidados no uso e no guardar a lâmina limpa e seca, ajudam a mantê-la. Lembre-se que facas não são alavancas e utilizadas como tal haverá uma grande chance de trincarem ou quebrarem. Sim, nas avaliações do "Journeyman" as facas são dobradas, entretanto estão testando as habilidades do cuteleiro, não constitui uma referência de como as facas devem ser utilizadas no cotidiano!


Quanto aos materiais:
- Aços inoxidáveis, não são inoxidáveis, eles são mais resistentes a corrosão devido aos teores de cromo e níquel em suas ligas. Em contra partida os aços inoxidáveis geralmente possuem baixo teor de carbono o que não permite que as lâminas tenham durezas elevadas. Sim, existem alguns raros "aços inox" com alto teor de carbono e "altos preços".
- Aços carbono, oxidam, contudo a possibilidade de obter ligas com alto teor de carbono, permite fabricar lâminas que alcancem durezas elevadas (mas lembrando: as extremamente duras são frágeis e difíceis de afiar). Sim, aços carbonos possuem uma grande variedade de opções de elementos de liga, que auxiliam na obtenção de características específicas. As lâminas de aço carbono devem ser "oleadas" após o uso, azeites e óleos de cozinha são bons elementos de proteção.
- Aços Damasco constituem um capítulo a parte. Historicamente, numa época de total desconhecimento da química dos metais, era a forma possível para conciliar dureza e tenacidade às espadas, e atualmente os trabalhos focam na beleza e requinte. Neste processo lâminas de diferentes materiais, como aço inox e carbono, são misturadas a quente (caldeamento) e ao final, após um ataque com ácido e lixamento fino, revelam-se belas figuras.
Quanto a cosmética:
- Muitas facas de aço carbono estão sendo comercializadas com uma camada de fosfato ou de tinta. Tais lâminas ao serem retiradas da embalagem são lindas, mas nas primeiras utilizações o belo acabamento será riscado. E, tais riscos serão locais sucetíveis a oxidação, salvo se a lâmina for limpa e oleada. Pouco é dito sobre a toxicidade das camadas de fosfato, os processos lidam com elementos altamente tóxicos, e disto se pode inferir que a camada acinzentada, mesmo apassivada, não deve ser muito boa para a saúde*. Esta é uma discussão análoga as frigideiras com antiaderente (PTFE). Voltando, as reações químicas do aço com o oxigênio geram diferentes oxidações, as de coloração cinza escura, preta ou marrom escuro indicam uma condição de maior estabilidade química entre a lâmina e o ambiente, ou seja, o aço carbono está sendo bem cuidado. Já as oxidações côr "alaranjada" ou "vermelha" (conhecidas como ferrugem), devem ser imediatamente limpas e oleadas, pois poderão corroer rapidamente a lâmina.
- As lâminas polidas também são bonitas, contudo qualquer pequeno risco ou mancha poderá deixar o proprietário insatisfeito. Cabe notar que a lâmina de aço carbono, lixada ou polidas, tende a manchar e a mudar de coloração, geralmente acinzentado, logo na primeira utilização, isso é normal!
- As lâminas com acabamento lixado "simples" permitem serem retocadas de forma fácil. Alguns minutos com uma sequência de lixas entre 180 e 400 costuma ser o suficiente e confere a lâmina uma superfície acetinada, e sim, alguns riscos mais profundos ficam, mas ajudam a contar a história da faca!
- As lâminas de aço damasco ao serem utilizadas, o padrão de figuras será riscado e, também, as partes que não sejam de aço inox irão enferrujar. Com os devidos cuidados tais lâminas podem ser mantidas e/ou restauradas.

Cabe ao proprietário optar se a faca será para "uso" ou "estima", bem como o quanto de cuidado irá dispensar para manter sua faca em boas condições.


Cabo

"Espim", "estoque", "rita", "lampiana", "bicuda" e tantas outras denominações de facas no qual o usuário tenta melhorar a pega. As vezes um paninho enrolado, uma madeira, uma madeira impregnada com resina, uma bela peça de prata adornada com ouro ... muito frenesi nos "tamanhos das lâminas" e na "cosmética", contudo poucos se atentam nas reais condições da transmissão da força do braço-mão-gume. O cabo deve gerar uma pega adequada e propiciar a transição entre o corpo e a lâmina, conferindo precisão, conforto e firmeza ao manuseio. Cabos soltos não são bons, mesmo pequenas folgas acabam por denegrir o uso de boas lâminas ... mantenha os cabos de suas facas confortaveis e firmes!
Com o passar dos anos os cabos tendem a apresentar pequenas trincas, nas quais a umidade poderá penetrar. Então de tempos em tempos limpe e sele os cabos, com produtos de sua preferência (resinas, seladores, ceras etc.).

Bainha

As bainhas geralmente são de couro ou materiais sintéticos, são ótimas para transportar as facas, contudo tendem a reter a umidade do ambiente e alguns couros possuem resíduos químicos (sais, sulfato de cromo, cloreto de sódio etc.) do curtimento, que aceleram a oxidação. Deve-se evitar de guardar as facas nas bainhadas, pois tendem a oxidar.
Nos churrascos há uma grande probabilidade da faca suja ser colocada na bainha, o que irá impregnar o couro com resíduos de sal. Nestes casos é necessário limpar a bainha por dentro, isso é trabalhoso, nunca jogue água fervente dentro da bainha de couro, ela irá encolher e endurecer.


Notas


- A palavra "gume" deriva do latim "acumem" que significa: ponta, ferrão, agudeza. Uma palavra similar é "cume", contudo ela denota uma posição: parte mais elevada, topo, apogeu etc.

- Gume em inglês é frequentemente citado como "cutting edge angle" (ângulo de corte) e para lâminas com afiações simétricas, a metade do ângulo de gume recebe a denominação "grinding angle" (ângulo de esmerilhamento).

- Em usinagem de metais (torneamento e fresagem) o "ângulo de gume" é denominado de "ângulo de cunha" ("wedge angle") e na literatura técnica geralmente é expresso pela letra grega β (beta) e nas ferramentas de tornos, o beta é elevado, varia entre 55 e 90 graus.

- A "era do Ferro" iniciou há uns 3000 anos, logo após a era do Bronze, contudo a compreensão do processo da química do aço é recente, meados do século XIX, antes disso cada "fornada de aço" dependia de pitadas da "mais pura sorte". Já o domínio químico de outros elementos de liga como cromo, níquel, molibdênio etc., remontam ao início do século XX. Na década de 1960 ainda era comum ver carros parados nas estradas com a ponta de eixo quebrada, posso estar enganado, mas há muito que não vejo automóveis em tais condições, ou seja nos últimos 50 anos a qualidade dos aços disponíveis melhorou! Entretanto, algumas falas sobre fios, facas e espadas regridem a um discurso mítico, como um retorno a época das Cruzadas!

- A idéia intuitiva que um elemento mais duro arranha o de dureza inferior, foi ordenada por Friedrich Mohs (1822), seu trabalho é conhecido como Escala de Mohs, que vai do talco ao diamante (de 1 a 10). E toda, sim, todas as afiações, de forma direta ou indireta, são baseadas no diferencial de durezas. Lâminas temperadas estão entre 5 e 7 então para serem afiadas deve-se utilizar abrasivos entre 8 e 10 etc.

- Nas facas de uso culinário evite passar óleos automotivos, mesmo que tenham denominações atrativas como "micro-óleo"**, pois os óleos de cozinha (soja, azeites etc.) são opções mais saborosas e menos tóxicas. Qualquer óleo irá dificultar o contato do oxigênio com a lâmina, alguns são quimicamente mais estáveis, mas são necessários alguns anos para que um óleo mude seu pH a ponto de atacar uma lâmina. Caso queira guardar uma lâmina por muitos anos, limpe, seque e aplique uma fina camada de parafina e para remover a parafina utilize soprador térmico ou água quente.


* os fosfatos causam danos renais e osteoporose.

** "micro-óleo" foi uma bela jogada de marketing que confundiu, mais um pouco, o usuário sobre o conteúdo da "latinha".





Ilha de Santa Catarina - Florianópolis - SC


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